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Historiadora, Pedagoga, Mestra e Doutoranda em Estética e História da Arte pela USP;

Especialista em Arte-educação e Gestão de Patrimônio e Cultura;

Conservadora e Restauradora de Arte Sacra - CTTA.


Depois do episódio polêmico envolvendo a sua exposição de 1917, Anita Malfatti marcou presença na Semana de Arte Moderna de 1922. Porém, em seguida, ela retornou à Europa, para se estabelecer dessa vez na França, ao contrário das outras viagens ao exterior que tiveram como destino a Alemanha e os Estados Unidos.

Para realizar essa viagem, ela recebeu uma bolsa de estudos do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo. Na França, ela foi aluna de Maurice Denis (FIG. 1), amigo dos pintores Pierre Bonnard e Jean-Édouard Vuillard, que fizeram parte do grupo dos Nabis2. A princípio, o interesse de Anita Malfatti por esse artista estava focado na questão religiosa, temática que começou a trabalhar e a se interessar deste o primeiro ano em Paris, enviando inclusive um trabalho para o Salão do Outono de 1924, o Interior de Igreja (FIG. 2). Além disso, frequentou cursos livres de arte e demonstrou grande afinidade com Henri Matisse e com o estilo cubista de Fernand Léger.

anita1 resize bc675FIGURA 1 - Maurice Denis, A Anunciação (1913)
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/314548355200978844/

anita2 resize e6866FIGURA 2 – Interior de Igreja (1924) Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, São Paulo, Museu de Arte Sacra.
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/323625923204619061/

Anita enviou duas obras ao Salão do Outono de 1924, mas apenas o Interior de Igreja (FIG. 2) recebeu comentários e críticas. Essa obra trazia o interior como enfoque, motivo que foi trabalhado em outras telas desse mesmo período. Esse interior confirmou o interesse de Anita Malfatti pelas soluções dos Nabis e assemelhou-se ao interior de igreja pintado por Édouard Vuillard (FIG. 3). Anita ressaltou os detalhes com linhas e tons fortes. O estilo com o qual compõe o interior para tela parece ter sido feito de modo simplificado e em escala reduzida, o que resulta em um ambiente fechado e conciso.

anita3 resize 1d0fbFIGURA 3 – Édouard Vuillard, La Chapelle du Château de Versailles (1917-19) Têmpera sobre papel montado em tela, 96 x 66 cm, Paris, Musée d´Orsay.
Fonte: http://en.muzeo.com/art-print/la-chapelle-du-chateau-de-versailles/vuillard-edouard

Pode-se dizer que há neste momento uma espécie de retorno à ordem por parte da artista, iniciada já no final da exposição de 1917. Esta fase de Anita - em Paris - é pouco estudada porque, para muitos, foi uma espécie de retrocesso, o que não é correto afirmar. O que houve foi que a artista dizia não querer se vincular a nenhum movimento artístico e, por meio da Escola de Paris, ela pôde experimentar um retorno à ordem sem grandes excessos.

Tadeu Chiarelli, a partir da análise de Tropical, tela pintada por Anita Malfatti em 1917, demonstrou como a artista afastou-se das concepções de vanguarda que adotara até então para, aderindo ao clima de retorno à ordem que já era uma tendência internacional, realizar uma mudança em sua linguagem pictórica.

A tela Tropical, pertencente à coleção da Pinacoteca do Estado, faz parte de uma série de obras pouco conhecidas de Anita Malfatti, apresentada pela artista na exposição por ela protagonizada, em dezembro de 1917, mostra em que a artista exibiu, ao lado de telas pintadas naquele ano no Brasil, outros trabalhos produzidos em seu estágio, em Nova York. Além de Tropical, ao que se sabe, teria sobrevivido apenas o pastel intitulado Índia, daquele mesmo ano, pertencente à coleção Gilberto Chateaubriand/MAM-RJ. Hoje desaparecidas, da série também faziam parte A palmeira; Rancho de sapé; Capanga e Caboclinha. Segundo a principal estudiosa da obra da artista, Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti produziu essas telas antes daquela mostra, porque já estava sensível ao debate sobre o nacionalismo na arte - a grande questão em pauta no circuito artístico paulistano, naquele período3.

Durante o estágio da artista na Europa, ela realizou uma primeira visita à Itália em 1924, onde obteve notáveis referências visitando museus e, consequentemente, entrando em contato com obras importantes que abordavam o tema bíblico, tais como as de Giotto di Bondone e Fra Angelico.

Já em 1928, Anita elaborou uma obra que trouxe um ponto crucial do episódio bíblico: a Ressurreição de Lázaro. Este foi um dos milagres de Jesus, relatado em João 11:1-46, no qual Cristo trouxe Lázaro de Betânia de volta à vida após quatro dias do seu sepultamento.

anita4 5a3b1FIGURA 4 - A Ressurreição de Lázaro (França -1928). Acervo Museu de Arte Sacra. Óleo sobre tela, 196 x 129cm.
Fonte: http://gpaas.blogspot.com.br/2010/03/arte-sacra-de-anita-malfatti-no-museu.html

A Ressurreição de Lázaro (FIG. 4) foi realizada como trabalho final exigido pelo Pensionato Artístico de São Paulo4, lembrando que esta entidade concedeu uma bolsa à Anita permitindo que ela permanecesse em Paris de 1923 a 1928.

Nesta obra é possível perceber que para a figura de Lázaro há um tipo de sarcófago. O corpo encontra-se coberto por faixas e as mãos estão posicionadas em cruz. Quanto à figura de Cristo, este está com os braços ao alto e há um anjo na parte superior da tela.

Esta tela deveria ter sido entregue à Pinacoteca do Estado de São Paulo, por se tratar da obra final do Pensionato. A artista, no entanto, deixou outra tela no museu, a obra Tropical, de 1917.

Após a morte da pintora, a família doou Ressurreição de Lázaro para o Museu de Arte Sacra de São Paulo, onde se encontra atualmente. Merece destaque o fato de que o MAS-SP realizou uma exposição temporária “A Arte Sacra de Anita Malfatti”, inaugurada em 25 de janeiro de 2009 e que contou com 23 obras exclusivamente de temática religiosa.


1É Historiadora, pedagoga, mestra e doutoranda em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Especialista em Gestão de Patrimônio e Cultura, Arte-educação, além de Conservadora e Restauradora de Arte Sacra em seu ateliê.

2Na década de 1890, reuniam-se na Academie Julian, em Paris, vários artistas franceses inspirados pela obra de Gauguin. Sérusier, que em 1888 conhecera Gauguin em Pont-Aven, encorajou os outros artistas, entre eles Maurice Denis, Pierre Bonnand e Édouard Vuillard, a formarem o grupo que ficaria conhecido como “os nabis” (palavra de origem hebraica que significa os profetas). A simplificação de formas em padrões amplos e a pureza cromática empregados por Gauguin receberam o nome “sintetismo” e tiveram grande influência sobre o grupo. Os nabis criaram cartazes, vitrais, cenografias e ilustrações para livros.

3CHIARELLI, Tadeu. “Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão”. Um modernismo que veio depois. São Paulo, Ed. Alameda, 2012.

4O Pensionato Artístico do Estado de São Paulo foi um projeto lançado em 1892 e regulamentado em 1912, tendo como principal objetivo o desenvolvimento do ambiente artístico paulistano, baseado no financiamento de artistas para sua formação e especialização, através de viagens de estudos a centros artísticos da Europa, como Paris e Itália. Esse deslocamento periódico de artistas de São Paulo para o exterior traria consequências positivas para o crescimento desse ambiente artístico, como a realização de exposições, a permanência de artistas na cidade com o estabelecimento de ateliês, o surgimento de colecionadores e de um mercado de arte, a fundação de acervos públicos (no mesmo período é criada a Pinacoteca do Estado), bem como o crescimento da crítica de arte e do debate em torno da arte (CHIARELLI, 1995, p. 46-48).